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Uma Mulher para Deus
Uma Mulher para Deus

 

UMA MULHER PARA DEUS

 

- Tudo vai melhorar quando ela voltar.

- Ela quem?

- A mulher de Deus! Quando ela foi embora, o escuro e o Diabo se espalharam.

 

Tive esse diálogo faz três décadas com um paciente do hospital São Pedro. Já estava no fim de seus dias, sendo que quase todos entrando e saindo do manicômio. O sentido era transparente. Entre tantos golpes da vida, ele cedo perdeu a mãe e penou essa falta. Seu universo despedaçara-se para nunca mais colar.

 

Não era um delírio sistemático como na paranoia, mal tecia essas ideias e elas se desfaziam. O tecido do pensamento esquizofrênico é de trama frouxa, dispara em todas as direções. Nesse caso o que restava era essa repetição: uma mulher voltaria e reordenaria o universo.

- Dizem que Jesus voltará, mas ele já veio e não resolveu. Ela é quem precisa voltar.

 

O “ela” não tinha nome nem era chamada de deusa, mas preenchia essa significação. Não é inédito pensar numa mulher para Deus: Freud escreveu um trabalho sobre Daniel Paul Schreber, jurista alemão que acreditava que Ele o escolhera, contra sua vontade, para ser sua mulher e gerar uma nova raça.

 

Na sua intuição, aquele senhor falava o óbvio: nós, homens, quando avulsos, nos extraviamos e deprimimos. Sem uma mulher, adoecemos mais, vivemos menos, aguentamos mal a solidão. Porém, nessa sua particular lógica, nem Deus escaparia. Nosso mundo estaria largado para as cobras por falta de uma mulher. Um deus carente não combina om o que estamos acostumados, mas assim era o deus dele.

 

Tanto como os santos incorporaram os aspectos de mitos locais, o culto a Maria, iniciado por volta do século 11, foi necessário para canalizar o papel e a importância das mulheres para os povos que vinham sendo cristianizados, especialmente os norte-europeus. Essas populações suportavam mal a religião patriarcal, na qual as mulheres não tinham nenhum protagonismo. Embora o papel de Maria seja passivo e menor, ao menos existia uma mulher.

 

Motivado por esse delírio, pensei como seria caso houvesse deusas com papel decisivo na criação do mundo, pelo menos uma mãe ao lado do pai celeste. Afinal, não é por meu interlocutor ser psiquicamente frágil que deva ser desqualificado em saber por onde passam nossas indigências afetivas. Talvez aquele senhor tenha raão: falta mulher na nossa mitologia.

 

Nunca fui de crer e rezar, mas nos momentos difíceis me pego pensando o que diria a Ela, caso a cosmogonia correta seja sua falta: Caríssima Senhora, volte! Não deve ter sido pouco o que Ele te fez passar, nem por pouco tempo – por que o tempo é cósmico e dilatado –, mas reconsidere em voltar. Pense em nós, pobres pecadores que ansiamos por ti. Pense neste mundo destroçado, carente daquele olhar que só as mães têm.

 

Fonte: ZeroHora/Mário Corso (mariofcorso@gmail.com) em 17/09/2017

Publicado no Facebook em 27 de setembro de 2017