O AMOR É CONSTRUÇÃO. O FIM DELE, TAMBÉM.
Amor e ódio podem ser, em igual intensidade, assumidos ou dissimulados.
Todos os personagens desta crônica são fictícios. Por isso, não perca tempo em tentar identificá-los. Mas nada impede que eles tenham existido e até é bem provável que os leitores fiquem com a curiosa sensação de que já ouviram estórias semelhantes, mas não recordem bem onde. E isso se explica: o comportamento humano, ainda que rico e variável, está cheio de clichês, de modo que mesmo quando a história parece original, pode apostar que, em algum momento e lugar, isso já aconteceu e causou o mesmo assombro que provoca agora, como se fosse primeira, única e espetacular.
E isso tudo como introdução para deixar bem claro que ainda que possa ser apressadamente classificada como ficcional, esta história é verdadeira.
O cuidado em preservar as identidades se deve ao temor de que alguém se sinta melindrado com a revelação de atitudes que exponham uma intimidade que prefeririam, para sempre, sepultar. A escolha de Ivanir e Evonir como nomes dos nossos heróis foi intencional, dada a unissexualidade deles. O que esta história tem como tônica é a dissimulação da maldade, tão perfeita que durante décadas os familiares mais próximos, e no final da vida, os médicos e os enfermeiros, envolvidos durante semanas de convívio emocionalmente intenso, nunca perceberam qual era, na verdade, o sentimento dominante, e se deixaram seduzir pelas aparências.
Pois Ivanir adoeceu, e a agonia no hospital foi prolongada e dolorosa. Os meses de internação despertaram na enfermagem, nos médicos e nos cuidadores a admiração pelo desvelo de Evonir, sempre presente e disponível, sem fome e sem sono, mesmo quando a exigência presencial tornava quase impossível comer ou dormir. Em muitas noites dormira à beira do leito, de mãos dadas, como a mais perfeita âncora afetiva que alguém pudesse imaginar no final da vida. Convencidos de que ninguém como Evonir sabia ajeitar os lençóis e a posição do travesseiro, os familiares desistiram de oferecer revezamento e outra vez suspiraram de admiração e inveja pelo carinho espontâneo e recíproco.
Quando o tumor cansou de testar a resistência dos nossos personagens, Ivanir finalmente morreu e, no mesmo instante, Evonir sacudiu o corpo inerte, inconformado com o desfecho mais do que previsível. Sem resposta ao esforço vão, Evonir desabou em um choro convulsivo que misturava lágrimas copiosas e uma tentativa frustrada de articular as palavras. Comovido com o sofrimento, alguém dos cuidados paliativos ofereceu um abraço solidário, que foi aceito, e choraram juntos até que Evonir finalmente conseguiu falar: “Meu Deusinho, obrigado. E me perdoa por ter duvidado de que, um dia, eu ainda voltaria a ser feliz!”.
O violento empurrão que desfez o abraço foi só uma frágil expressão do pasmo e do desencanto pelo amor fingido que varreu aquele quarto como um furacão.
Todos têm dificuldade de aceitar que amor e ódio possam ser, em igual intensidade, assumidos ou dissimulados. E se chocam mais as testemunhas inocentes que ainda não aprenderam que esses comportamentos muito bizarros não ocorrem por acaso, e que ninguém é muito amado ou muito odiado sem ter contribuído contínua e intensamente para isso. Tijolo após tijolo.
Fonte: Zero Hora/Caderno Vida/J.J.Camargo (Cirurgião torácico e diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre) (jjcamargo.vida@gmail.com) em 04/02/2018