AMORES POSSÍVEIS
O amor é o encontro de ideias e anseios de duas pessoas diferentes, que jamais se complementam.
Quem já viveu uma relação amorosa conhece um certo roteiro que a acompanha. Primeiro, o apaixonamento: a sensação de haver encontrado a cara-metade, o ser predestinado para nos completar. Passado um tempo, a decepção: crescendo a intimidade, vai se revelando a imperfeição desse encontro – ou, para ser mais exato, vai-se renunciando à embriaguez que sustentava essa ilusão.
Esse é um momento crítico, no qual se decide se será possível seguir apostando na relação – apesar de suas imperfeições. O rompimento e a consequente retomada da busca pelo par perfeito é uma saída possível, mas muitas vezes prenúncio de um ciclo a se repetir, da fascinação da reciprocidade à desilusão do desencontro. A paixão é inviável: jamais haverá quem corresponda ao que se procura no outro. Cedo ou tarde, com mais ou menos estardalhaço, o desencontro aparece.
Há quem escolha seguir sustentando a alto custo a ilusão de complementariedade, não medindo esforços para seguir cego aos desencontros. Com malabarismos mentais para mantê-los fora do foco, o outro vai sendo encaixado, às vezes não sem violência, naquilo que nele se quer ver. Como efeito, o encontro fica apenas na esfera da fantasia, e com isso mantém-se uma distância que evita toda verdadeira intimidade, pois que jamais é tão limpinha e sem atritos.
Tem também os que, diante da frustração, responsabilizam o outro por não corresponder a seus anseios. Assim, mesmo que decidam seguir junto ao tão imperfeito parceiro, reivindicam que volte a reenchê-los tão plenamente como no momento da paixão. Não lhes escapa falha nem detalhe, estão sempre prontos apontar o que deveria ser feito para ser perfeito. Assim, evitam admitir seu próprio quinhão na decepção, pois o parceiro ideal é ideia tão somente sua.
Essas são apenas algumas das ilusões a que os amantes recorrem diante das desilusões. Mas não é apenas em relação ao parceiro que se recorre a elas: a ideia de relacionamento é, por si mesma, carregada de idealizações – inclusive a tão contemporânea que, ingênua, crê ser possível “não ter expectativas”. Do sempre atual sonho do casamento perfeito, em que ambos se completam felizes para sempre, às relações “livres”, um sonho de nosso tempo individualista, segue-se na busca de uma forma na qual caibam o amor e o desejo – que sempre nos excedem.
O amor é, por natureza, o terreno do equívoco, pois é o encontro de ideias e anseios de duas pessoas diferentes, que jamais se complementam. Conversando, certamente se avança, mas o mal-entendido sempre reaparece, sobretudo quando tudo parece bem entendido demais. Hoje, acredita-se que, com transparência e honestidade absoluta, é possível o verdadeiro encontro, a relação perfeita por expor todas as suas arestas e imperfeições. Mas são delírios de nossos tempos: nossos atos e palavras, no mais das vezes, superam nossas intenções (e compreensões).
Quem já encarou o desafio de deitar-se em um divã sabe da dificuldade que é ser honesto, sobretudo consigo mesmo: somos bem mais contraditórios e complexos do que imaginamos e do que apresentamos aos outros. É da condição humana nos iludirmos, mas é escolha – mesmo que não consciente – insistir em ilusões que não servem mais, como sapato apertado que machuca. A desilusão é, por isso, grande aliada do amor: permite ir, se há disposição e coragem, das belas idealizações aos amores possíveis.
Fonte: Zero Hora/Paulo Gleich/Jornalista e Psicanalista (paulogleich@yahoo.combr) em 01/04/2018