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Um Dia de Loucos
Um Dia de Loucos

UM DIA DE LOUCOS!

 

Acordei com o toque do despertador e sem nenhuma vontade de sair da cama.  Queria ficar ali, divagando e sorrindo diante da expectativa do dia que tinha pela frente.  Fazendo planos para um dia perfeito, tudo certinho para o retorno do meu amor.  Viagem de trabalho e eu aqui de férias, e sozinha há uma semana. Nem o mar, que eu amo tanto, preenche o vazio da tua ausência, meu querido.  Estava tão feliz e queria que o final da tarde chegasse logo, te trazendo para mim.  Mentalmente percorri todos os cômodos de nossa casa, nosso paraíso, conferindo se não havia me esquecido de alguma coisa. Aparentemente não, mas decidi conferir com meus próprios olhos, depois do banho.

Pulei da cama e deixei tudo arrumado... Havia trocado os lençóis na noite anterior, o Marcelo adora o meu cheiro em nossa cama.  Separei um vestido florido e me dirigi para o banheiro, não conseguia parar de sorrir... Sentia-me como uma garotinha esperando o primeiro encontro de amor. Deliciosa aquela água morna escorrendo no meu corpo, trazendo lembranças e antevendo o encantador fim de semana que teria pela frente.  Desviei os pensamentos e fechei o registro do chuveiro... quer dizer: tentei.  O registro ficou solto em minhas mãos e um jato de água gelado jorrando sobre mim e fazendo um barulho estridente ao bater na parede do box, quando desviei o corpo.

— Droga, droga, droga, mil vezes droga! Onde vou arrumar um encanador hoje, agora?

Saí rapidamente e fechei o registro do banheiro. Ainda praguejando, analisei o estrago enquanto me secava.  Voltei ao quarto para me vestir e correr para o telefone em busca de um encanador.  Já pensando na dificuldade de conseguir encontrar algum disponível numa sexta-feira, num balneário de férias.  Passei pela cozinha para pegar um suco e sentei ao lado do telefone com agenda em mãos.  Liguei para o João e estava em Capão, o Carlos estava indo para a capital. Tentei o Ernesto – não gosto muito do serviço – mas era uma emergência, e também estaria ocupado durante todo o dia.  Fechei a agenda desanimada.  Não sabia o que fazer.  Decidi preparar um café enquanto a brilhante ideia não surgia.

Enquanto degustava meu café, o telefone, que estava sobre a mesa começou a tocar e sorri, sabia quem estava ligando... 

— Bom dia, querida! – diz o meu amor.

— Bom dia, com muita saudade querido!

— Eu também!  Vou chegar por volta de 18h e prometo que neste mês e no próximo, não precisarei mais viajar.  Vamos nos esquecer do mundo, minha linda menina!

— Obrigado, querido. Estou muito feliz...

— Querida, parece que vai chover hoje à noite... hein?

— Hum... Mar e chuva, estou encantada e querendo apressar o relógio...

— Preciso ir, querida, eu ligo quando estiver de saída, com a mala no carro. Um beijo... te amo!

— Outro e mais outro... te amo muito, muito...

Desliguei o celular e, sorrindo, servi-me de outro café.  Fiquei ali, sorvendo o líquido negro e doce, como se fosse um néctar dos deuses do Olimpo, até a realidade voltar a assombrar minha mente: o registro do chuveiro...  Arrumei a cozinha rapidamente e fui ao banheiro conferir o estrago. O outro banheiro estava em condições, o chuveiro era igual, apenas ficava do outro lado do quarto... E pensamentos excitantes e libidinosos tomaram conta de minha mente.  Por que não?  Voltei os olhos para o buraco na parede onde ainda escorriam gotas de água e saí em busca de uma régua para medir o diâmetro do cano e comprar um tampão, tipo uma rolha para cano.  Eu mesma iria isolar o cano e assim poderia abrir o registro do banheiro, e o resto ficaria disponível para uso.  Fiz a medição e me preparei para sair, precisava ir ao supermercado e à ferragem comprar o tampão.

Antes de entrar no carro fiquei observando o céu... estava estranho e parecia mesmo que iria chover.  Dirigi-me para o centro do balneário e parei na galeria comercial com várias lojas. Na vitrine de uma delas, vi um lindo vestido azul e já me imaginei dentro dele abrindo a porta para o Marcelo, e a admiração que ficaria estampada nos lindos olhos negros.  Quando fui pegar minha bolsa para sair, cadê a bolsa?  Ficara em casa, no sofá.  Volto para casa à procura da bolsa esquecida. 

Ao retornar ao centro comercial, observo que já são 10h.  Compro o tampão na ferragem e vou até a loja para comprar o lindo vestido azul, que ficou mais lindo ainda com meu corpo dentro dele.  Na saída da loja, a Silvana me liga convidando para almoçar, que estava no restaurante da família, ali mesmo na galeria.  Fui para lá.  Enquanto andava pela área coberta, começou uma chuva torrencial, do nada, como se alguém tivesse aberto as comportas de uma barragem lá no alto.  Andei junto às lojas para não me molhar, até chegar ao restaurante.

Logo ao entrar a Silvana veio ao meu encontro e viu meu rosto contrariado perguntando: 

—  Credo, que cara!  O que aconteceu?

—  Não estou gostando do tempo e meu dia está muito confuso... 

—  O Marcelo não volta hoje?

—  Sim, e quero a chuva só a noite...

Ficamos rindo e nos dirigimos para uma mesa, onde colocaríamos o papo em dia e o tempo passaria mais rápido.  Silvana e eu somos vizinhas na capital e nos conhecemos há bastante tempo.  Não somos amigas íntimas, mas a gente se dá bem e nos encontramos de vez em quando na praia.  Eu e o Marcelo somos “bichos do mato”, não gostamos muito de companhia. Digamos que “nos bastamos”.

Serviram filés de peixe grelhado com molho tártaro e uma miscelânea de salada com folhas verdes, passas, alcaparras, e vários legumes saborosos.  Eu estava faminta e a refeição, saborosa, até que de repente algo quebrou... Eu ouvi o “creek” dentro da minha boca. Parei de mastigar e fiquei estática, sem saber o que eu havia mordido.  Fiz sinal para minha amiga e levantando, dirigi-me ao banheiro.  Precisava de um espelho e cuspir o que tinha na boca para saber o que era... e era um pedaço de um dente.  Socorro! Eu havia quebrado um dente com uma sementinha de uva-passa.  Como pode? E agora?  O que vou fazer?  Passei a língua no dente quebrado e senti a aspereza... com certeza machucaria meu lábio, minha língua, e o Marcelo estava para chegar, e eu de dente quebrado... e onde encontrar um dentista?  Num balneário, sexta-feira! 

Acabou o almoço.  Voltei à mesa e contei o que havia acontecido... Mostrei o estrago e ela disse que era “quase nada”.  Claro, o dente era meu!  Nem pedi sobremesa, apenas bebi o suco agradecendo o convite e caí fora.  Já dentro do carro, fiquei pensando em procurar um dentista... mas onde? Olhei ao redor e não vi nenhuma placa de consultório odontológico.  Decidi ir ao supermercado, focar naquilo que precisava fazer... como vou beijar o meu amor?  Vou machucar os lábios e a língua dele... Socorro!

Comprei o que precisava para o jantar especial e outras tantas coisinhas que necessitava, tais como: frutas, hortaliças e duas garrafas de vinho branco para comemorar o nosso amor.  O empacotador me acompanhou até o carro, para ajudar a guardar as compras no porta-malas... Ao pegar a sacola com as garrafas de vinho, não sei como, as alças arrebentaram e as garrafas foram caindo... eu acompanhei a cena como se estivesse acontecendo em câmera lenta.. uma delas se espatifou no piso de cimento do estacionamento, a outra, para minha sorte... sorte?  Ao sair da sacola, precipitou-se para o carro e ao bater na beirada, caiu quebrando dentro do bagageiro.  E o aroma do delicioso vinho invadiu minhas narinas...

O garoto ficou mortificado, pedindo desculpas e disse que iria chamar seu supervisor para resolver o assunto.  Fiquei ali, eu e aquele vinho todo perfumando meu carro, imaginando aquele cheiro no calor do verão... e sabia que precisava levar o carro para lavar, antes que secasse.  Sacolas de compras molhadas, hortaliças temperadas com o vinho... E eis que retorna o empacotador com seu chefe, todo solícito e pronto a resolver o meu problema... ou o dele?  Sugeriu que eu retornasse à loja com todas as compras, que seriam substituídas por embalagens secas e a reposição das garrafas do vinho. 

— E o meu carro? – perguntei.

Disse que eu deveria mandar lavar, que a loja pagaria a lavagem.  Então decidi chamar o posto para limpar meu carro e tomaria um táxi para minha casa, por conta do supermercado.  Tudo feito conforme determinado.  Meu carro seria entregue na minha casa na praia, tão logo ficasse limpo.  Chegando em casa, guardei as compras e adiantei o menu para o jantar.  Depois, arrumei o tampão no cano do chuveiro.  Liguei o registro e ficou perfeito, nenhuma gota d’água saía por ali e a torneira da pia e o vaso sanitário funcionavam. Estava orgulhosa de mim. Levantei os olhos para o espelho e me deparei com o meu sorriso... e o dente quebrado.  Minha língua já estava dolorida pelo contato com a aspereza do local.  E aí... acendeu a lâmpada da ideia brilhante na minha mente... precisaria lixar o local, continuaria quebrado, mas liso... e como fazer isso?  Com uma lixa de unha.  Abri a gaveta do balcão da pia, onde costumava guardar as lixas e outras coisinhas para unhas.  Peguei uma lixa nova, e com uma tesoura cortei um pequeno pedaço e dediquei os minutos seguintes a lixar o dente... lixava e passava a língua e fui repetindo o gesto até que ficou lisinho e não senti mais o incômodo da aspereza... E de novo, estava muito orgulhosa de mim, confiante que tudo daria certo dali para frente, e já eram 15h...

Dei uma última arrumada na casa, passei por todos os cômodos, conferindo tudo: as flores, as delicadas margaridas que eu adorava, as louças para o jantar, as toalhas para o banho e tudo que seria necessário para uma recepção calorosa ao meu amor.  Fui para o banheiro, para uma chuveirada rápida e refrescante e ter certeza de que tudo funcionava.  Sem contratempos, a casa estava pronta para receber seu ilustre e amado morador.  Estava desligando o chuveiro e ouvi a campainha.  Peguei a toalha e me sequei, vestindo um roupão corri até a porta e não havia ninguém.  Deixei pra lá. Vesti-me e fui terminar o jantar.  Arrumei a mesa e fui descansar um pouquinho para depois me preparar para esperar o Marcelo.

Mal havia me recostado no sofá, ouço um estrondo vindo do céu... trovões e relâmpagos tomaram conta do dia e logo caia uma chuva torrencial. Tão intensa quanto aquela do meio-dia.  Só que agora escureceu... e meus pensamentos partiram em direção a outras chuvas à beira mar...

— Droga de chuva... Do jeito que está indo o meu dia, à noite com certeza, não vai chover... Que dia!

Lembrei-me do meu carro, e do posto que não o entregara.  E a campainha, teria sido um funcionário do posto?  Liguei para eles e eu estava certa.  O apressadinho não insistiu e levou meu carro de volta ao posto.  Vai esperar a chuva parar para voltar aqui com o carro.  Droga! Conferi as horas, e já eram 17h20min.  Deveria então me preparar para ficar cheirosa para meu querido, pensando no que ele diria assim que eu abrisse a porta:

— Está tão linda e tão cheirosa a minha menina, enquanto eu estou sujo e suado, mas não resisto preciso de um beijo teu... E um beijo ardente e cheio de promessas para amenizar a saudade dos apaixonados... Te amo sussurrado no meu ouvido e o beijo quente...

Corri para o banheiro para me preparar.  Sem maquiagem, algumas pulseiras, brincos e o lindo vestido azul, nos pés uma elegante sandália de salto altíssimo também na cor azul.  Andei pelo quarto para acostumar com a sandália de salto alto, pouco usada no dia a dia e... inadvertidamente pisei na ponta da colcha que estava encostando no piso e fui ao chão.  Caí sentada e bati as costas na cama.  Senti como se uma corrente elétrica percorresse meu corpo das nádegas à cabeça e ao mesmo tempo uma sensação gelada. Aguardei alguns instantes, tentando me refazer do susto e só depois fiz força para me erguer... aparentemente estava tudo em ordem.  Ainda vacilante, andei pelo quarto e constatei que fora apenas um susto.

A chuva não dava trégua, caía sem cessar.  Olhando para a rua, eu percebi que estava ficando tudo cheio de água.  Liguei a internet para saber o que estava acontecendo em outras cidades do Estado.  Chovia em várias cidades do interior, todo o Litoral e Serra. Socorro!  Fiquei apreensiva e nada do telefone tocar.  Onde estava o Marcelo?   Por que não telefonava?  Enviei uma mensagem pelo WhatsApp.  Não gostava de mensagens, mas não me sentia segura para ligar, imagine se estivesse dirigindo e atendesse com toda aquela chuva? 

O tempo passava, a chuva continuava e nada do telefone tocar... O relógio já marcava 17h55min.  Eu andava de um lado a outro e decidi tirar a sandália desconfortável - e também para minha segurança.  Estava ficando muito ansiosa e com certeza cairia de novo.  Mas não fui eu quem caiu, foi a luz.  E com ela, o telefone e a internet.  E agora?  Que mais faltava acontecer?  Cair a casa em cima de mim? 

— Droga, droga de dia ferrado!

Sou uma pessoa normal e sensata, controlada e calma, e sentia que estava perdendo o controle, que ia surtar.  Então, respirei fundo e apanhei meu celular, sentando confortavelmente no sofá, no sentido de me acalmar e relaxar.  Eu estava sozinha, numa situação caótica e precisava me controlar.  Continuei com os exercícios de respiração até me sentir melhor.  Bebi um copo d’água gelada e ali fiquei no silêncio e no escuro.

Fiquei sentada um bom tempo e quando olhei no celular, já eram 19h25min.  A energia elétrica voltou nesse instante.  Aguardei alguns segundos e liguei o notebook para saber o que estava acontecendo.  Levei um tempo até fazer funcionar e constatei que havia sido um temporal bem feio.  E o pior estava por vir.  A notícia de uma queda de barreira na rodovia que liga a Serra ao Litoral.  Socorro!  Meu Marcelo, cadê?  O que foi feito dele?  Deveria pegar esta rodovia para chegar em casa.  Por que não telefona?  Eram tantas perguntas que eu não tinha as respostas.  O telefone voltou a funcionar e lá fora, a chuva fina ainda castigava a rua, que estava cheia d’água.  Saindo na varanda, eu via o mar revolto, jogando suas águas violentamente sobre a areia, avançando cada vez mais, como se me chamasse para acalmar a sua fúria.  E me lembrei de outras vezes que choveu e  mergulhei em suas águas agitadas, devolvendo-me à areia suavemente, para os braços do meu amor...

Retornei à sala e consultei outra vez a internet.  Liguei várias vezes para o celular dele e dava sempre “sem sinal” e eu não sabia o que fazer.  Nada podia fazer, a não ser esperar. Andei pela casa sem rumo, sem saber o que esperar.  Aí, desconsolada e fazendo um esforço imensurável para me manter calma, recostei-me no sofá e chorei. Eu era tão insignificante diante da natureza, da força dos ventos e nada podia fazer para mudar aquele dia, aquele terror que tomava conta de mim.

Não sei quanto tempo transcorreu, e saí do meu devaneio com o toque da campainha. Levantei assustada e descalça ainda, eu corri para abrir... Eram os rapazes do posto que vieram trazer o meu carro.  Abri o portão para que colocassem o carro para dentro e logo me entregaram as chaves e foram embora.  E eu fiquei ali, olhando a rua, o mar e sem notícias do meu amor.

Estava tudo deserto e decidi retornar à sala e ao sofá... seria, com certeza, uma longa noite... E uma longa noite escura pelo visto... a luz apagou e a escuridão inundou tudo à minha volta.  Fui tateando até a cozinha para procurar uma lanterna e lembrei que precisava conferir a porta, se havia fechado ou não.  Quando chego próximo da porta,  escuto um barulho de carro parando em frente de casa.  Meu coração bate acelerado e fico em dúvida se devo ou não abrir... Apuro o ouvido para escutar os movimentos lá de fora e ouço o portão abrindo e logo em seguida passos subindo os poucos degraus até a varanda... E meu acelerado coração não aguenta mais de euforia, conheço aqueles passos, conheço aqueles pés que agora estão diante da porta... Marcelo...

Sofregamente abro a porta e a lanterna ilumina um lindo rosto emoldurado por cabelos negros molhados, ficamos alguns segundos nos olhando e sorrindo, como náufragos ao encontrar terra firme.  Estende o braço e eu o puxo para junto do meu corpo e fecho a porta.  Sem pronunciar uma palavra sequer nossos corpos se procuram, se despem e se amam... ali no tapete da sala, da casa que é o nosso paraíso, o nosso chão.  Na escuridão da noite, sem a penumbra que o brilho da lua proporciona... nos encontramos.  Meu querido estava em casa e nada mais importava.

Depois de um longo tempo eu ouço a linda voz me perguntando:

— Como está a minha linda menina? Eu senti muito medo de não poder voltar e não sabia o que estava acontecendo, e o celular, sem sinal.

Marcelo apanhou a lanterna e iluminou meu rosto e depois foi descendo a luz pelo meu corpo, para em seguida retornar ao rosto, falando:

— Está linda e cheirosa... Eu te amo!  Como foi aqui?  Por que o teu carro não está na garagem?

Acariciei a linda face enquanto dizia:

— Aqui foi surreal, querido.  O carro?  Aconteceram tantas coisas hoje, é uma história longa... Na verdade foi... Um dia de loucos!